Murilo Mendes, Orfeu de Lélia Coelho Frota: Todos curvados constroem/ Sua próprias algemas.

LAMENTAÇÃO
por Murilo Mendes

.

Nenhum homem tem mais saída:
Antes de nós o dilúvio.
Durante, o tédio no caos,
Depois, o épico escuro.
A esperança desespera,
Os olhos não são para ver
Nem os ouvidos para ouvir.

O diálogo virou monólogo,
Meio-dia é meia-noite.
Todos curvados constroem
Sua próprias algemas.
O longo ai das criaturas
Sobe para o céu
Forrado de espadas.

Murilo Mendes, pintura de Guignard

Murilo Mendes, pintura de Guignard

ORFEU
por Lélia Coelho Frota

.

(trechos)

Não o encontraremos mais, com Saudade,
na ópera de Pequim.
Volantim Murilo
sustenta nosso mínimo fôlego de parentes
da mesma fala.
Em tua homenagem
prendo no cabelo
o agrafe da poesia.
Para te encontrar
levaremos flores
nos pés e nos cabelos.
Vem-nos esperar
na chegada estelar.
Correremos
relva adentro
sairemos pelo centro
nos pratos suspensos do tempo.

Esperamos rever-te breve
para que enfim se trave
o convívio solstício
do nosso estar em Alfa.

Tardiamente chegado
à defenestração da minha cela terrestre
é só agora que ponho a mão no coração do teu verso
e penso, Murilo,
como um grande silo
bíblico
de palavras de trigo
germinando, germinando

Entre uma cruz e uma estrela
ladeando Murilo e Mendes
ele decola,
convergiu.
Morte e nascimento se confundem
na sua ausência eléctrica
compacta como a massa de um quasar.
FUIT HIC

Para nós deixou gravada a sua marca
mineira, e vai na dianteira
movido a clavicembalos prestíssimos.
Percebe o código estelar
do aridíssimo caminho dos amores
que mapeou de arcanos.
Baco mineiro,
Murilo vai sem deixar sua Ariadne,
a palavra das coisas que viveu.
Não perderemos o bipbip
da tua, como disseste, telepessoa.
Sentimos pena
da nossa pequena voz para alcançar-te.
Nossa promessa inscrevemos, em teu rumor
de grande astro que se move com amor:
não esquecer.

Chovia uma triste chuva na poesia de Bandeira e Drummond

POEMA SÓ PARA JAIME OVALLE
por Manuel Bandeira

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Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
[pensando…
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei…

.

INTIMIDADE

drummond-sentado carlos

por Carlos Drummond de Andrade

.

O poeta prepara seu café
com a ciência de uma dona de casa.
O poeta faz sorvete de café
com a competência de um profissional.
O poeta compõe uma estrofe
como só ele sabe.

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Manuel Bandeira: Pura ou degradada até a última baixeza/ Eu quero a estrela da manhã

A ESTRELA
por Manuel Bandeira

Aquarela de Santa Rosa para Estrela da Manhã de Manuel Bandeira

Aquarela de Santa Rosa para Estrela da Manhã de Manuel Bandeira

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Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alto luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

estreladamanha_manuelbandeira

.

Estrela da Manhã
por Manuel Bandeira

Eu quero a estrela da manhã

Onde está a estrela da manhã?

Meus amigos meus inimigos

Pocurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua

Desapareceu com quem?

Procurem por toda parte

Digam que sou um homem sem orgulho

Um homem que aceita tudo

Que me importa?

Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites

Fui assassino e suicida

Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada

Atribuladora dos aflitos Girafa de duas cabeças

Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros

Pecai com os sargentos

Pecai com os fuzileiros navais

Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos

Com o padre e com o sacristão

Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novena cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples

Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte

Pura ou degradada  a até a última baixeza

Eu quero a estrela da manhã

Fernand Loyen Du Puigaudeau

Fernand Loyen Du Puigaudeau

ESTRELA
por Carlos Drummond de Andrade

.

Estrela da manhã,
estrela da tarde,
estrela da noite,
estrela do tempo inteiro,
da vida inteira,
fixa, imutável
pairando
sobre o poeta.

estrela-vida-inteira-manuel-bandeira-poesia

(Mosaico de Manuel Bandeira
in Bandeira a vida inteira)

ESPERO a proibição das trapaças/ manhãs de falas abertas/ a praça para os profetas/ o fim dos tecnocratas

VIDA NÃO VIVIDA
por Lara de Lemos

Lara-1943

.

Espero o fim da façanha.

O ocaso dos tiranos
a abolição dos mandatos
a bicicleta dos cegos
a vinda do ser biônico.

Espero o fim da patranha.

A supressão dos impostos
a queima das promissórias
a vitória nas diretas
o carnaval em agosto.

Espero o fim dos cucanhas.

Proibição das trapaças
manhãs de falas abertas
a praça para os profetas
o fim dos tecnocratas.

Espero o fim da esperança.

Lara de Lemos e Mario Quintana

Lara de Lemos e Mario Quintana

PRESENÇA
por Mario Quintana

.

Para Lara de Lemos

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
a folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!

Leia “O inventário de Lara de Lemos – a herença de um tempo malsinado”

João Cabral de Melo Neto e Sanderson Negreiros juntos

A ÁGUA DA AREIA
por João Cabral de Melo Neto

.

Podem a ablução, os muçulmanos,
com areia, se não têm água;
fazem da areia um outro líquido,
eficaz igual no que lava.

A areia pode lavar neles
qualquer espécie de pecado;
na ablução ela flui como a água,
dissolve o mal mais empedrado.

Sanderson Negreiros

Sanderson Negreiros

O NOME
por Sanderson Negreiros

.

7

João Cabral escreve
Com a ponta do lápis
E quando a ponta se quebra
Fornece o milagre

De escrever o contrário
Da existência real.
Das coisas, ele transmite
A sua desistência.

O seu contrário,
O traço anterior
A toda imaginação,
A que dá consciência

De existir além de nós,
de nossa vã existência,
De apalpar o conteúdo
E de só ouvir a voz.

João Cabral escreve
Quase sempre de trás
Para frente como quem
Quer fazer explodir

A matéria prisioneira
Da palavra, João Cabral
Une quaderna e canaviais
À sua face pernambucana

E com ela escreve
A elegia do aveloz.
João Cabral, quando
Não tem matéria exposta,

Expõe sua inteireza
De poeta magro,
Sua dor-de-cabeça
E a constância

De, em Espanha,
Nunca perder-se
Como objeto
De suas tristezas.

João Cabral veste
A infância de roupa
Branca, passada a ferro,
Passada a tempo

De a noite começar.
Depois, retira, peça
Por peça, o que antes,
Vestido, dava idéia

De preocupação.
João Cabral é simples
No que escreve.
E mais: simples

De amar imprevistos
Para essa simplicidade.
Daí, só sabe escrever
Com lápis fino na mão.

Orides Fontela: Difícil para o pássaro/ pousar/ manso/ em nossa mão

POUSO (II)
por Orides Fontela

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Difícil para o pássaro
pousar
manso
em nossa mão – mesmo
aberta.

Difícil difícil
para a livre
vida
repousar em quietude
limpa
densa

e ainda mais
difícil
– contendo o
vôo
imprevisível –

maturar o seu canto
no alvo seio
de nosso aberto
mas opaco

silêncio.

Terêza Thenório

Terêza Tenório

SONHOS POÉTICOS
por Talis Andrade

.

À Terêza Tenório

Um pássaro
imenso
pousa manso
nas mãos
de Orides Fontela

Um peixe
nas coxas
de Cecília Meireles

Um corpo
de argila iluminada
cega Edna St.Vincent Millay

enquanto Alfonsina Storni
aguarda o amado
ponha nas carnes
a alma que pelas alcovas
ficou enredada

Indóceis as mulheres velam
o amor fosse tão belo
quanto seus versos
O amor que arde
nas faces coradas
o amor que arde
nas entranhas orvalhadas
tivesse a pureza
de uma prece

Poeta Djalma Tavares, um arlequim bêbado

EM BUSCA DO SILÊNCIO
por Djalma Tavares

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Busco o silêncio no vazio
Por este amor tânico e louco,
Como o bailarino busca inutilmente
Música, espaço, movimento…
Música,
Luz,
Espaço…

Em caso destes o silêncio é frio!
Tem a frieza dos sarcófagos,
Tem a pureza das estátuas.

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UM ANJO BÊBADO
por Talis Andrade

.

Atravessando a enluarada
ponte Príncipe Nassau
um arlequim
A música dos suaves guizos
repercute como sinos de vento
na solidão da madrugada

O arlequim
anjo arcanjo dos bêbados
e suicidas
O arlequim
visagem alada
de Djalma Tavares

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Ilustrações: Arlequins de Picasso

.

Com seu corpanzil de Catimbó, Ascenso Ferreira canta a Cavalgada

A Cavalhada
por Ascenso Ferreira

Cavalhada

.

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

Alegria nervosa de bandeirinhas trêmulas!
Bandeirinhas de papel bulindo no vento!…

Foguetes do ar…

— “De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai começar!”

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

— Lá vem Papa-Légua em toda carreira
e vem com os arreios luzindo no sol!
— Danou-se! Vai tirar a argolinha!

— Pra quem será?
— Lá vem Pé-de-Vento!
— Lá vem Tira-Teima!
— Lá vem Fura-Mundo!
— Lá vem Sarará!
— Passou lambendo!
— Se tivesse cabelo, tirava!…
— Andou beirando!…
— Tirou!!!
— Música, seu mestre!
— Foguetes, moleque!
— Palmas, negrada!
— Tiraram a argolinha!
— Foi Sarará!

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

— Viva a cavalhada!
— Vivôô!!!

— “De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai terminar!”

INVENTÁRIO (POÉTICO) DO RECIFE
por Sylvio de Oliveira

Ascenso Ferreira

Ascenso Ferreira

(fragmentos)

Mas ainda permanecem
as ruas poéticas
de nomes e de poetas
que cantaram rios
exploraram ruas
e amaram tanto
a cidade sua
que entram em prantos
e quedam mudos
se recordarem
suas figuras
suas passagens
e seus poemas
como os lembrados
e sempre-vivos
Faria Neves Sobrinho
com suas Estrofes
aclarando o Crepúsculo
Olegário Mariano
sob cujos versos
a canção carregando
– em canto de cigarras –
evocou a sua terra
e tombou o solar
do Poço da Panela
Ascenso Ferreira
com seu corpanzil
de Catimbó
e a açucada voz
de Cana Caiana
soando grave
em todos nós

Olinda é só para os olhos. Ainda permanecem as ruas poéticas

OLINDA
(Do alto do mosteiro, um frade a vê)
por Carlos Pena Filho

Igreja e Mosteiro de São Bento, Olinda

Igreja e Mosteiro de São Bento, Olinda

.

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.

Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.

Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.

Quando a luz é muito intensa
É quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé

OS POETAS
por Sylvio de Oliveira

.

(fragmentos)

Mas ainda permanecem
as ruas poéticas
de nomes e de poetas
que cantaram rios
exploraram ruas
e amaram tanto
a cidade sua
que entram em prantos
e quedam mudos
se recordarem
suas figuras
suas passagens
e seus poemas
como os lembrados
e sempre-vivos
(…) Manuel Bandeira
de Evocação do Recife
do Recife sempiterno
jamais do Recife Morto
Joaquim Cardoso
de Mundos Paralelos
seu mundo recifense
de muitos amigos
e calculados elos
de arquitetura urbana
Deolindo Tavares
nosso colega inquieto
da turma de Direito –
estas paisagens que encheram
meus olhos e que muito amei
Carlos Pena Filho
que em Vertigem Lúcida
a vida viveu
e súbito morreu
em floração de abismos

ANTE O ROSTO DE CRISTO

Vitral de igreja

Vitral de igreja

ANTE O ROSTO DE CRISTO
por Marcos Konder Reis

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Senhor,
Teu rosto ri?
Teu rosto chora?
Nós não sabemos mais nem ri nem chorar,
Porque não olhamos mais a tua face.

Senhor,
O mundo pensa poder esquecer-te
Mas teu rosto luminoso permanece.
Teu rosto de homem,
Teu rosto de Deus.

Teus olhos que compreendem e que exigem,
Teus lábios que beijam e que comandam,
Teu choro que salva,
Teu riso que arrasta,
Teu rosto que é força,
Que deslumbra e é sol da madrugada sem fim nas fronteiras do universo
E é luar nas clarabóias do segredo,
Que entontece e é nebulosa vertigem de gozo eterno;
Que fataliza e é grito de fanfarra…
Ah! Sou um dos fatalizados do teu rosto!

Quero ser teu orador no cume do Everest,
Quero ser teu guerreiro nas planícies sem horizontes,
Quero ser teu mártir no Cruzeiro do Sul,
Mas sempre teu poeta na cidade do mundo.

Teu rosto, Senhor, é um rosto assim:
Faz a gente berrar a maldição
Para todos que não te amam.

E agora, quando vou saltar no trapézio,
Quero, Senhor,
Que teu rosto fique sempre no meu rosto
E é só.

.

A MARCOS KONDER REIS
por Lúcio Cardoso

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Que espécie de morte, a desejada, a altiva,
a morte acontecida do inocente?
A morte.
Sem leite humano a fervilhar na taça,
sem taça em brinde a levantar.
Sem fel.
As mãos tratadas
de enormes abandonos consentidos.
As mãos.
Deus meu, e todo amanhecer assim
amanhecido. O retorcido cáctus
acontecido.
Quem foi? Por quê? O dia aonde?
Nada adianta. Milhões de areias,
de consentimentos e de fel.
O acontecer.

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Quando publiquei estes dois poemas em 3/5/2005, no nosso blogue Jornalismo de Cordel, no Comunique-se, fiz o seguinte comentário:

1) Konder, celebrado poeta da Geração de 45, anda esquecido pela crítica. Principalmente depois que Ricardo Oiticica, em sua tese de doutorado “O Instituto Nacional do Livro e as ditaduras – Academia Brasílica dos Rejeitados”, revela que em 1970, o Instituto Nacional do Livro passa a ser dirigido pela escritora Maria Alice Barroso. É quando começa o regime de co-edição com editoras comerciais. Para ser aceito, um livro tinha que passar pela comissão de pareceres, cujos integrantes eram Otávio de Faria, Adonias Filho e Marcos Konder Reis.

2) Segundo Oiticica, examinando as co-edições do INL, podem ser encontradas obras de valor. “Mas isso é secundário quando se vê que a maioria das obras era de acadêmicos da Academia Brasileira de Letras e, entre os vetados pela censura, encontravam-se pessoas da linha de frente da produção literária contemporânea, como João Ubaldo Ribeiro, Clarice Lispector, Sérgio Santana, Luís Carlos Maciel, Jorge Maltner, Moacir Scliar, Paulo Coelho, Helena Parente Cunha e Flávio Moreira da Costa”. In Jornal da PUC-Rio.