Recife Cidade Cruel

por Talis Andrade

 

INGRATA PARA OS DA TERRA

No Guia Prático da Cidade do Recife
Canta Carlinhos Manuel João e Joaquim
Joaquim foi esquecido pela cruel cidade
quem vai se lembrar de mim

 

MAKTUB

Cumprirei minha sina
dias santos e profanos
vou escrever poesia
até que chegue a hora
vão me chamar lá no céu
Carlinhos João e Manuel
– Vem em paz irmão
a gente assina teus versos

 

 

 

 

 

Com o perdão de Nabokov: o Recife também teve uma Lolita

por Rafael Rocha

O andarilho da zona do meretrício do Recife condensava de forma extrema as contradições de todas as opressões e desconstruía o pudor hipócrita das elites.

Foi o retrato de uma época e hoje é uma lenda urbana

Ivo Alves da Silva era conhecido na cidade do Recife como “Lolita”. Nas lembranças de quem o viu de perto, como eu vi e de quem conheceu suas bravatas e fama de brigão tornou-se figura folclórica ao ponto dele mesmo dizer que “quem não conhece Lolita não conhece o Recife”. Uma variante de “quem vai a Roma e não conhece o papa não conhece nada”.

“Lolita” era um bebedor diário, homossexual e arruaceiro brigão. E muito mais do que isso era um cantor de rua, clown dos estudantes de engenharia e de direito, quando as duas escolas eram vizinhas, entre as ruas do Hospício e Riachuelo. A fama de Lolita teve seu auge nos meados dos anos 50 e 60. Ele deve ter morrido depois do ano de 1975. Não se tem certeza.

O tipo “Lolita” é incomum. Não se pode fazer um resumo simples. Ele levava para as ruas da cidade do Recife a explosão das contradições sociais brasileiras. Nascido no município de Nazaré da Mata, terra dos canaviais, migrou para São Paulo como faziam todos os nordestinos da época em busca de fortuna. Aos 22 anos, já alfabetizado, retornou ao Recife e tornou-se nome urbano da cultura de massa.

Seu vulgo “Lolita” nasceu de um personagem de um filme brasileiro de chanchada e de um folheto de cordel que ele leu e decorou todo. No filme e no folheto existiam personagens com o nome “Lolita”, e ele, como declamador dos versos pelas ruas do Recife, passou a ser chamado assim. Sua vida? Deve ter sido igual a de tantos meninos pobres. Estuprado quando ainda criança em sua terra natal terminou estigmatizado pelo pai, tornando-se a partir daí um beberrão e maconheiro. Toda sua vida adulta viveu nas zonas de prostituição, no bairro do Recife e no bairro do Pina, na Pensão Jaú.

Jamais mostrou infelicidade pela vida que levava. Dizia que adorava viver nesses lugares e também entre a estudantada universitária. Com a polícia do Recife teve uma relação não muito boa, mas até certo ponto cheia de paradoxos. Era perseguido, odiado, acolhido e protegido por muitos policiais. Apesar de pequeno e franzino era um valentão. Ninguém queria brigar com ele. Todos tinham medo dele, principalmente os playboys da alta sociedade.

Conheci “Lolita” em minha adolescência. Vi “Lolita” atuar na calçada no Bar Savoy, em plena Avenida Guararapes, fazendo uma arruaça dos demônios depois de ter bebido demasiado. De repente, apareceu um camburão com policiais militares para acabar com a “festa” dele. Não deu certo. Os policiais (em um total de cinco) tentaram deter “Lolita” na base da violência.

Todos eles entraram na pior, apanharam feio e pediram reforços. Chegaram dois camburões e cercaram “Lolita”. O tempo fechou! Depois de muito apanhar e completamente ensanguentado, “Lolita” olha para um dos policiais que brande o cacetete para ele e grita: “Bate, bate neste corpo que já foi teu”. O PM parou de bater depois de ver que todos os bebedores do Bar Savoy estavam a zombar dele.
O homem, sim, porque ele era um homem, condensava de forma extrema as contradições de todas as opressões. Sua família representou a fatalidade da exploração dos canaviais de Pernambuco. Todos os membros migraram para São Paulo, como fizeram famílias inteiras.

Assim não custa entender porque “Lolita” tornou-se uma expressão libertária das ruas do Recife. Ele deixava a “zona do meretrício” e levava o corpo para as pontes e ruas chiques do centro da cidade. E então explodia sua agressividade e seus “escândalos cantantes”.

Ele desconstruía o pudor hipócrita e a máscara de macheza da elite pernambucana, desmoralizando-a com a sua extrema valentia e modo de brigar. Na ditadura militar suas peregrinações folclóricas pelas ruas do Recife acabaram à força, mas a lenda “Lolita” continua viva nas ruas do Recife e nas gerações que o conheceram e que o viram encarar a violência, brigando contra os poderes constituídos e cantar imitando a insuperável Ângela Maria de quem era fã: “Será que eu sou feia?” Secundado pelos boêmios dos bares: Não é não, senhor! E ele: Então eu sou linda? E os boêmios: Você é um amor! Publicado no HUMANITAS

Recife boêmio de Selênio Homem de Siqueira

Por Talis Andrade
(trechos)

3

Não encontro parceiro
para conversas de bar
O relato da imundice
das devassas
em segredo de justiça
em segredo cúmplice
os jornais temem publicar
Revelar as anotações
do livro dois da polícia
os vícios dos políticos puritanos
a origem das fortunas repentinas
dos industriais da seca e molhados
um prazer que redime
dos jornalistas os pecados

Não encontro parceiro
para conversas de bar
Expulsaram da noite os boêmios
os poetas os seresteiros
José Gonçalves de Oliveira
tornou-se abstêmio
Selênio Homem de Siqueira
virou místico de vez
Audálio Alves converteu-se
em um santo burguês

4

Dos amigos a lembrança
de antigas andanças

Eunício Campelo capitão do Santa Maria
herói de uma revolução que não existiu
nunca navegou nenhum navio
partiu nas asas de uma gaivota
em busca de uma nau
pelos mares de Oropa França e Bahia

Eugênio Coimbra Júnior o último dos românticos
amava os cães leprosos e vadios
Deve estar no céu fazendo companhia a São Roque
Deve estar no céu rezando poesia
com São Francisco de Assis

Carlos Pena Filho ninguém perdoa
a morte estúpida numa batida de carro
Um poeta deve finar tuberculoso
ou morrer de faca e bala
e não a mocidade perdida
numa simples curva da vida

5

Amortalhados na roupa surrada de jornalista
os amigos descansam na colina
Lembrá-los é ressuscitar exumados sonhos

Tadeu Rocha a preservação do São Francisco
rio conquistado das nações indígenas
o rio o sumidouro Abdias Moura
descreveu em livro
Luiz Nascimento a pesquisa
da história de Pernambuco
nos almanaques e pasquins
impressos nas campanhas eleitorais
festas de santo e motins
Adonias Moura a defesa do futebol
como arte dança alegria do povo
e não um escuro fosso de negócios escusos

Para que acordar os mortos
que viriam incomodar os vivos

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do“Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e“A República” (Natal). Tem 13 livros publicados, entre os quais o recém-lançado“Romance do Emparedado” (Editora Livro Rápido) e outros à espera de edição.

Postado por O Escrevinhador

Seleta de Vania Luiza de Lira: Bela poesia de Talis Andrade em homenagem a Selênio Homem de Siqueira!

Urariano Mota: “O crime contra Soledad é o caso mais eloqüente da guerra suja da ditadura no Brasil”

Soledad, beleza e sangue

“A morte de Soledad deu-se em razão de sua ternura”

por Conceição Lemes

Soledad Barret Viedma. Eu a ‘conheci’ ao ler uma coluna do jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota, em Direto da Redação. Fascinou-me na hora. Uma jovem idealista, corajosa e linda, muito linda. Foi torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga. O texto era tão terno, carinhoso, delicado. Confesso que me passou pela cabeça os dois terem sido namorados.

Emocionou-me tanto a história, que, imediatamente, quis saber mais de Soledad. Daí nasceu esta conversa com Urariano, que lança, em julho, o livro Soledad no Recife pela editora Boitempo. Ele é autor do romance Os Corações Futuristas, cuja paisagem é a ditadura Médici.

Soledad

Por que Soledad? Na sua coluna, você diz que só agora teve condições de mergulhar nas entranhas daquele momento. Por quê?

Urariano Mota – Há temas que nos perseguem, embora nem sempre a gente perceba. No meu primeiro livro, o romance Os corações futuristas, houve Cíntia, uma brava socialista. Já no destino trágico de Cíntia havia um destino de Soledad. A ‘diferença’ é que Cíntia se apoiava em outra pessoa, em outra militante. Enquanto Soledad, pelo menos quero crer e me empenhei muito por isso, Soledad é a pessoa. É a própria pessoa, pelo menos desejo ter realizado isso.

Por que só agora, 36 anos depois? De um ponto de vista pessoal, estou mais apto e cônscio de minhas fronteiras. De um ponto de vista mais geral, digamos, objetivo, o crime contra Soledad é o caso mais eloqüente da guerra suja da ditadura no Brasil. A traição que ela sofreu expressa, com vigor, a traição contra jovens do sentimento mais generoso, que é o sentimento de humanidade, do mundo.

Era tua amiga? Como ela era?

U.M. – Eu sou fundamentalmente um escritor. Isso quer dizer, expresso minha experiência vivida, sempre. Ou em fatos biográficos, testemunhados e sofridos, ou em fatos imaginados, recompostos, ressurgidos, que são também, para a literatura, para o artista, fatos testemunhados e sofridos. Soledad não era, ela é minha amiga. Mas não trocamos palavras em sua curta vida. Este livro diz a ela, fala as palavras que não podemos trocar, no Recife da ditadura Médici.

Mais de uma pessoa, para não dizer quase todas as pessoas, pensam que Soledad foi minha namorada, que eu a conheci pessoalmente. Isso vem da narração e da forma apaixonada do relato. Essa impressão surge, veio e vem do livro. Mais de um leitor já recebeu essa impressão. Isso se deve à mistura, em um só corpo, de pessoas e fatos absolutamente reais, documentados, sabidos, ao sentimento que tenho daqueles dias. O documento vivido pela segunda vez. Então, é claro, o elemento ‘ficcional’ virou factual. Como ela era, como ela é, o livro dirá.

É citado o massacre da chácara São Bento. Que lembrança isso traz?

U.M. – As notícias, publicadas em todo o Brasil em janeiro de 1973, dos seis ‘terroristas’ mortos no aparelho da São Bento, são absolutamente falsas. As ‘notícias’ de terroristas mortos, naquele tempo, eram reproduzidas com a mesma redação e teor em toda a imprensa brasileira. Vinham da agência de segurança nacional. Jamais houve o ‘massacre da chácara São Bento’. Houve a execução fria, planejada, de seis bravos militantes. A chácara foi o teatrinho criado para a execução de seis bravos.

Soledad Barret Viedma e Pauline Reichstul – há testemunho público disso – foram assaltadas em uma butique no Recife, de surpresa espancadas sob pistolas e seqüestradas. Em uma mangueira, por trás da butique, a proprietária notou depois sangue, vômito e urina. Isso de modo público, à vista de todos. Jarbas Pereira Marques, outro militante, que aparece entre os terroristas da chácara, foi retirado da livraria onde trabalhava, à luz do dia. Digo isso no livro, e repito aqui: em uma ditadura, até as datas dos jornais são falsas.

Soledad foi traída pelo cabo Anselmo, que a delatou ao delegado Fleury. Você conheceu o cabo Anselmo? O que sente por ele?

U.M. – Eu estudo o seu caráter há muitos e muitos anos. Ele é objeto de minha permanente observação e pesquisa. No entanto, jamais vi na rua o cabo Anselmo. Eu o conheço por seus cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele perseguiu, traiu e matou.

Ninguém podia imaginar que ele fosse uma infiltração. Anselmo pertence à família dos agentes duplos, dos instrumentos de política que se chamam espiões. Isso quer dizer: ele é um mundo de mentiras. Ele era e é um sistema em que mentiras armam mentiras, que constroem mentiras, sempre. Isso quer dizer, enfim, que tudo quanto esse instrumento dizia e disser, falar, deve ser posto sob absoluta desconfiança, porque ele mente por sistema, por hábito, por defesa, por ataque e natureza. Não se pode acreditar em uma só das suas palavras. Quando ele diz eu amo, eu respeito, o bom senso deve traduzir de imediato, ele odeia e despreza.

Sou de opinião que não importa o seu último nome. Porque ele não tem outro nome nem outra face. Jonas, Daniel, José, com barba, sem barba, magro, gordo, com novos olhos, novas orelhas, novo nariz, nova boca, não importa. Ele será sempre, para onde for, cabo Anselmo, aquele que gerou a morte da sua companheira, que trazia um filho no ventre.

Soledad morreu jovem, linda. Se ela vivesse no Brasil de hoje, o que estaria fazendo Soledad, em quem votaria, o que a preocuparia?

U.M. – É a pergunta mais difícil. Mas sei, ou posso ter a esperança de que ela estaria no movimento socialista, com um apoio crítico ao governo Lula. Continuaria linda, pelo fogo que tomava o seu corpo e sua vida, que não se apaga, não arrefece, apenas fica mais maturado. Como um vinho decantado que embriaga melhor.

Para ela, viva neste 2009, digo o que escrevi no livro:

Soledad não é só a mulher bonita, de um ponto de vista físico, cuja fotografia revela apenas uma estação do seu ser. Uma estação imóvel do seu peito dinâmico, e de tal modo que dará ao fotógrafo o que se diz de um mau desenhista, ‘isto não se parece com ela, não saiu parecido’. E se pedirá então ao fotógrafo o absurdo, a saber, que a máquina, a mecânica, reproduza um ser, a textura, cor e delicadeza da orquídea, da pessoa mesma. Como se fosse possível da flor um close que a isolasse do ar que ela respira, do campo em torno, do cheiro que exala, em resumo, como se fosse possível reproduzir o complexo, a conspiração de sentidos que se dirigem para um único fim, a pessoa, o ser vivo, poderoso em nos despertar amor, afeição, paixão, tar a e paz, que buscamos como a uma miragem. Ainda assim, se sabemos que na flor há um ser inalcançado na fotografia, se comparamos, se transpomos mal, imagine-se então Soledad no lugar dessa flor do campo. Imaginamos mal e mau, já vêem. Flor não se rebela nem canta. Flor nos desperta canção e rebeldia, quando machucada. Mas a pessoa de Soledad, ainda que lembre essa flor – e é irrecusável não lhe ver a pele como o tecido de uma pétala –, e assim a lembraremos pelo vento forte e traiçoeiro que se prepara para a muchucar e destruir, ainda assim, como a superar tal associação, ainda que nos persiga como só uma idéia é capaz de perseguir, hoje, neste dia do seu aniversário, ela está mais bela que antes. ¡Arriba, Sol!

***

Trechos

Eu a vi primeiro numa noite de sexta-feira de carnaval. Fossem outras circunstâncias, diria que a visão de Soledad, naquela sexta-feira de 1972, dava na gente a vontade de cantar. Mas eu a vi, como se fosse a primeira vez, quando saíamos do Coliseu, o cinema de arte daqueles tempos no Recife. Vi-a, olhei-a e voltei a olhá-la por impulso, porque a sua pessoa assim exigia, mas logo depois tornei a mim mesmo, tonto que eu estava ainda com as imagens do filme. Num lago que já não estava tranquilo, perturbado a sua visão me deixou. Assim como muitos anos depois, quando saí de uma exposição de gravuras de Goya, quando saí daqueles desenhos, daquele homem metade tronco de árvore, metade gente, eu me encontrava com dificuldade de voltar ao cotidiano, ao mundo normal, ‘alienado’, como dizíamos então. Saíamos do cinema eu e Ivan, ao fim do mal digerido O anjo exterminador. Imagens estranhas e invasoras assaltavam a gente.

A vontade que dava de cantar retornou adiante, naquela mesma noite. No Bar de Aroeira, no pátio de São Pedro, naquela sexta-feira gorda. Como são pequenas as cidades para os que têm convicções semelhantes! Estávamos eu e Ivan sentados em bancos rústicos de madeira, na segunda batida de limão, quando irromperam Júlio, ela e um terceiro, que eu não conhecia. Ela veio, Júlio veio, o terceiro veio, mas foi como se ela se distanciasse à frente – diria mesmo, como se existisse só ela, e de tal modo que eu baixei os olhos. ‘Como é bela’, eu me disse, quando na verdade eu traduzi para beleza o que era graça, graça e terna feminilidade.

A morte de Soledad

Chegamos agora mais perto de Soledad Barret Viedma. Excluo-me, na medida do possível, da qualidade daquele que a amou em silêncio.

Há quem considere que a morte de Soledad, nas circunstâncias que conhecemos mais tarde, deu-se em razão de sua ternura. Isso é mais que um namoro, um interlúdio, para dizer que ela esculpiu a própria sorte, porque, diabo, era terna e verdadeira. Com a evidência de um escândalo. Prenhe de ternura até as raias do suicídio. Esse elogio torto, digno da reencarnação e pele de um Anselmo 2, é como um açúcar no sal de sua execução. Um doce, um mel, a lhe correr sobre os lábios entre coices, descargas elétricas e afogamentos. Conviria melhor ser dito que ela, por suas qualidades raras de pessoa, estava condenada.

Poeta Djalma Tavares, um arlequim bêbado

EM BUSCA DO SILÊNCIO
por Djalma Tavares

.

Busco o silêncio no vazio
Por este amor tânico e louco,
Como o bailarino busca inutilmente
Música, espaço, movimento…
Música,
Luz,
Espaço…

Em caso destes o silêncio é frio!
Tem a frieza dos sarcófagos,
Tem a pureza das estátuas.

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UM ANJO BÊBADO
por Talis Andrade

.

Atravessando a enluarada
ponte Príncipe Nassau
um arlequim
A música dos suaves guizos
repercute como sinos de vento
na solidão da madrugada

O arlequim
anjo arcanjo dos bêbados
e suicidas
O arlequim
visagem alada
de Djalma Tavares

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Ilustrações: Arlequins de Picasso

.

Com seu corpanzil de Catimbó, Ascenso Ferreira canta a Cavalgada

A Cavalhada
por Ascenso Ferreira

Cavalhada

.

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

Alegria nervosa de bandeirinhas trêmulas!
Bandeirinhas de papel bulindo no vento!…

Foguetes do ar…

— “De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai começar!”

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

— Lá vem Papa-Légua em toda carreira
e vem com os arreios luzindo no sol!
— Danou-se! Vai tirar a argolinha!

— Pra quem será?
— Lá vem Pé-de-Vento!
— Lá vem Tira-Teima!
— Lá vem Fura-Mundo!
— Lá vem Sarará!
— Passou lambendo!
— Se tivesse cabelo, tirava!…
— Andou beirando!…
— Tirou!!!
— Música, seu mestre!
— Foguetes, moleque!
— Palmas, negrada!
— Tiraram a argolinha!
— Foi Sarará!

Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Fitas e fitas…
Roxas,
verdes,
brancas,
azuis…

— Viva a cavalhada!
— Vivôô!!!

— “De ordem do Rei dos Cavaleiros,
a cavalhada vai terminar!”

INVENTÁRIO (POÉTICO) DO RECIFE
por Sylvio de Oliveira

Ascenso Ferreira

Ascenso Ferreira

(fragmentos)

Mas ainda permanecem
as ruas poéticas
de nomes e de poetas
que cantaram rios
exploraram ruas
e amaram tanto
a cidade sua
que entram em prantos
e quedam mudos
se recordarem
suas figuras
suas passagens
e seus poemas
como os lembrados
e sempre-vivos
Faria Neves Sobrinho
com suas Estrofes
aclarando o Crepúsculo
Olegário Mariano
sob cujos versos
a canção carregando
– em canto de cigarras –
evocou a sua terra
e tombou o solar
do Poço da Panela
Ascenso Ferreira
com seu corpanzil
de Catimbó
e a açucada voz
de Cana Caiana
soando grave
em todos nós

As favelas do Recife na poesia de Gustavo Krause e Sylvio de Oliveira

A DESPASAIGEM
por Sylvio de Oliveira

.

(fragmentos)

A água é quente
de muitos verdes
tão cristalina
que os arrecifes
que a contêm
bordam piscinas
que os olhos beijam
e os braços têm
em praias brancas
onde o mar lava
como alimenta
até nos mangues
a vária gente
e cuja fome
tão atrasada
e envelhecida
antes se tece
– não se arrefece –
nos arrecifes
do bom Recife
mas se extravasa
na despaisagem
de nus mocambos
na maré rasa
como a exibir
em seus molambos
os crus despojos
da subgente
sobrevivente

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COMPR(0)MISSOS COM A FAVELA
por Gustavo Krause

.

(trechos)

TODA CIDADE TEM A FAVELA QUE MERECE.
TODA FAVELA TEM A CIDADE QUE MERECE.

FAVELA NÃO É CIDADE

N
E
C
E
S
S
I
D
A
D
SÓ E SÓ
S

(…)

O HOMEM É DOENTE, A MULHER É DOENTE.
O MENINO É DOENTE.
É PRECISO TER DÓ

D
O

E
N
T
E

ESTE SER NÃO VIVE O DILEMA HAMLETIANO.
VIVE DO DILEMA

D
O

N
Ã
O

SER

O MOCAMBO NÃO É CASA.
O BARRACO NÃO É ABRIGO.
O SOL É BRASA.
A CHUVA É CASTIGO

(…)

E ENTRE MORTOS E FERIDOS
NÃO SOBRA NEM A BONECA DO MARACATU

RAÇÃO NÃO É COMIDA.

CORPO E CARNE CARCOMIDA.

O ESQUELETO ANDA, FALA, E RI.

SIM, RI.

DO

S
I
R
I

QUE NA VIDA É CAÇA E NA MORTE
CAÇ(A)DOR

ÁGUA SUJA NÃO É BEBIDA.
NÃO HIDRATA, DESIDRATA.

ENGORDA
A
O
S
POUQUINHOS

O PASTO DA LAMA
QUE CLAMA, RECLAMA

O

C
O
R
P
DOS
A
N
J
I
N
H
O
S

HÁ QUEM PENSE (E MUITOS PENSAM)
QUE NESTE MUNDO NÃO VIVE GENTE

.

EVOCAÇÃO DO RECIFE E DE UMA RUA PELOS POETAS MANUEL E JOAQUIM

EVOCAÇÃO DO RECIFE
por Manuel Bandeira

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz

Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas

A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:

Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:

Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão…)

De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo

Rua da União…
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
…onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora…
…onde se ia pescar escondido

Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento

Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu

E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas

E eu me deitei no colo da menina
e ela começou a passar a mão nos meus cabelos

Capiberibe
— Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo…

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam

Recife…
Rua da União…
A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife…
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô

 Rua da União, n º 263, Recife. Casa do avô de Manuel Bandeira, onde o poeta passou a infância

Rua da União, n º 263, Recife. Casa do avô de Manuel Bandeira, onde o poeta passou a infância

A MANUEL BANDEIRA:
HOMENAGEM MINHA E DE UMA RUA
por Joaquim Cardozo

Joaquim Cardozo

I

Num tempo muito cedo em minha vida
Várias vezes visitei Tia Rosinha
Na sua casa da Rua da União.

O vento vinha do mar sobre os sobrados antigos
Do velho Recife: passava sobre a confluência
Dos dois rios da cidade – de águas tão diferentes!
E vinha balouçar-se nos ramos das “Casuarinas”
Da Escola Normal: balouçar-se e… plangentes.
-Os bicos das aves que havia no vento
Bicavam o liso reboco das casas da rua,
E nele abriam pequeninos orifícios…
Nele, naquele reboco, liso e vidrado como se fosse de louça.

Pela calçada da Assembléia,
Ao longo da Rua arborizada de “Carolinas”
Sempre de grandes frutos carregadas,
-Frutos cor de batina de padre franciscano –
Passavam as normalistas,
Os estudantes, passam/passavam, do Ginásio Pernambucano
-Na paz recifense da tarde presente/perene, e quieta
Havia um pressentimento de que ali,
Alguns anos atrás, também passara um poeta.

II

Num sobrado da Rua da União,
Entre as ruas do Príncipe e Riachuelo,
Desfiaram-se as minhas primeiras horas de trabalho;
Era defronte do pequeno jardim do Senado
-Jardim de um canteiro somente – do qual um meu amigo,
-Excelente mentiroso – e, ali, alto empregado,
Era o “jardineiro”,
Nesse trecho da rua moravam lindas moças morenas,
Lindas moças muito brancas moravam…
Da prancheta em que desenhava, no primeiro andar,
Vi-as de longe, nos seus vestidos claros e leves,
Num passo tranqüilo, conduzindo e ondulante,
Quase sempre na direção da Rua da Aurora.

Para esta rua saía, às quatro da tarde,
Com os meus companheiros de trabalho;
-Rua do Sol, pela manhã, e, à tarde, de sombra;
Rua de margem de rio, de calçadas prediletas…
Tinha-se a impressão que conosco, às vezes,
Conosco, ao nosso lado, ia também um Poeta.

III

No trecho em que termina na Rua Formosa,
Numa de suas casas, a Rua da União me foi moradia;
Era uma casa de corredor independente,
Daquelas que conservam em mistério a sala de visitas;
-Tinha/tem um sótão com janela para a rua,
De onde se viam as palmeiras da Igreja dos ingleses.

Uma noite me chamaram: alguém me procurava;
Desci a escada do sótão, fui até o corredor;
Diante de mim, sorrindo,
Estava uma poeta: Manuel Bandeira;
Estava presente, o pressentido – duas vezes – naquela Rua.

Falou-me de Nicolaus Lenau, de Maurice de Guérin,
De Gonçalves Dias, de Antônio Nobre, de… de… de…
E vi, e contemplei/compreendi.
-Através dele: Um – um por um – todos os que vivem em poesia.

-Estava presente, o pressentido.

Na/da Rua da União passou/saiu para o Mundo
Um grande Poeta: Manuel Bandeira.

A CIDADE DE GUSTAVO KRAUSE E O HOMURBANO

A CIDADE E O HOMURBANO
por Gustavo Krause

 

.

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A cidade é feita de casas
e de covas rasas.
A cidade é feita de ruas
e de estátuas nuas.

A cidade é feita de praças
e de fumaças.

A cidade é feita de bares
e de azares.

A cidade é feita de gentes
e de carentes.

A cidade é feita de graças
e de massas.

A cidade é feita de artistas
e de conquistas.

A cidade é feita de inteligências
e de consciências.

A cidade é feita de poesias
e de maresias.

A cidade é feita de amores
e de dores.

A cidade é feita de dezenas de equipamentos,
de centenas de lamentos
e de milhares de sentimentos.

A não-cidade é feita de céus arranhados
e de homurbanos desesperados.

Homurbanos?

Alpinista, escala morros.
Nadador, atravessa o mar de lama.
Velocista, corre contra o tempo.

O homurbano se move em disputa atlética.

Em busca frenética
de vapores tóxicos,
de rações dietéticas
com sabores cítricos,
de sonhos estéticos
sem formas nítidas,
com esperanças caquéticas
de vitórias exdrúxulas.

O homurbano pára no descanso (u)tópico.
Em recolhimento fóbico
da guerra cósmica.
Em proposta lúdica
de inspiração etílica.
Em impulso erótico
de sexo rápido.
Em sombras típicas
de sono asmático.

 

ponte da boa vista foto restaurada

RECIFE
por Talis Andrade

.

(trechos)

7

Nascida do encontro das águas
linda Cidade Maurícia
Veneza Brasileira
No turbilhão da Festa da Mocidade
eu não percebia
Vendidos a retalho
os arredores do Recife
os canaviais das fábricas de açúcar
as pastagens das vacarias
as matas os sítios
aterrados os alagados das marés
os novos dias
tornariam realidade
a profecia
de Gilberto Freyre
A cidade ficaria inchada
a pobreza morando ao lado
dos arranha-céus
a pobreza morando ao lado

8

Multiplicaram-se as favelas
Krause construiu as escadarias
as ruas os caminhos dos morros
em parceria com o povo
Multiplicaram-se os carros
o prefeito Antonio Farias
abriu espaços para a passagem
duplicando pontes viadutos
por lugares nunca imaginados

 

 

Recife e seus três cantores que são quatro

MINHA TERRA
por Manuel Bandeira

.

Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus…
É hoje uma bonita cidade!

Meu coração ficava pequenino.

Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma bonita cidade.

Diabo leve que pôs bonita a minha terra!

 

 

Recife Vlademir Barbosa da Costa

 

MANUEL, JOÃO E JOAQUIM
por Carlos Pena Filho

.

 

(trechos)

Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manuel, João e Joaquim.
No Jardim Treze de Maio,
Manuel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do avô
e nem a rua da Aurora,
nem o mar, nem a sereia
e nem o boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas Campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.

 

Fotografia: Wlademir Barbosa da Costa