A revista Época publica “O Cristo dos textos rejeitados pela Igreja toma o lugar do Messias dos Evangelhos”, de Antonio Gonçalves Filho, com o seguinte resumo:
“Jesus segundo os apócrifos
As heresias contadas pelos evangelhos rejeitados pela Igreja
Virgindade de Maria
Maria teria apenas 12 anos quando casou. José desconfiou de sua traição, achando que ela poderia ter perdido a virgindade.
Natividade
O menino Jesus seria filho ilegítimo de um soldado romano e não teria nascido em Belém, mas em Nazaré. Sem reis magos.
Jesus criança
Seria travesso e temperamental. Teria matado um amiguinho que esbarrara em seu corpo, ressuscitando o garoto em seguida.
Os discípulos
Alguns seriam misóginos e detestavam Madalena, que sempre estava ao lado do mestre e é retratada como sua amante.
Crucificação
Outro teria sido crucificado. Seguidores de Jesus não poderiam resgatar o corpo porque era impuro tocar cadáveres na Páscoa”.

Maria Madalena, obra de Gregor Erhart. Louvre.
Não discuto o sensacionalismo, e sim o desconhecimento dos apócrifos. Maria não casou com 12 anos. Ela foi confiada a José, porque não podia menstruar no templo. Como ficou grávida, quando tinha 15 anos, José devia uma justificação. Ele sabia que não era o pai. Está nos evangelhos canônicos e nos apócrifos.
In a História de José, o carpinteiro: IV. Bodas de Maria e José. 1. “Convocaram então as tribos de Judá e escolheram entre elas doze homens correspondendo ao número das doze tribos. 2. A sorte recaiu sobre o bom velho José, meu pai segundo a carne. 3. Disseram, então, os sacerdotes à minha mãe, a Virgem: `Vai com José e permanece submissa a ele até que chegue a hora de celebrar teu matrimônio”.
Madalena era considerada uma discípula. Isso diferenciava Jesus dos outros judeus. A comensalidade, e andar acompanhado de mulheres.
Maria engravidada por um soldado romano foi uma versão levantada pelos judeus, na Idade Média. A origem e fontes dessa contrapropaganda religiosa está bem documentada por John P. Meier in Um Judeu Marginal (são vários volumes, que Antonio Gonçalves não leu). Aliás, os apócrifos defendem a virgindade de Maria, com mais ênfase que os canônicos.
O cristianismo é uma religião de origem israelita. O Novo Testamento é uma continuação do Antigo. E todos com diferentes seitas. No século IV, os romanos temeram o crescimento do cristianismo. Maximiniana Maza fez publicar várias acusações contra os cristãos.
Vale acrescentar que para muitos judeus, Jesus nunca existiu. Maomé, que tem Jesus (Isa) como profeta, acreditava que Jesus foi retirado vivo da cruz.
Gonçalves assistiu o filme Código da Vinci e ficou impressionado. Não sabe que constitui um enredo que ganhou nova embalagem. No livro O Sangue Real e o Santo Graal já aparece a história do filho de Jesus com Madalena. Em Jesus, o Homem, Barbara Thieling fala de três filhos. Madalena jamais foi considerada uma amante.
Para quem gosta de escândalos: No Evangelho de São Tomás, fica explícita uma relação amorosa com Salomé. Thieling informa que Jesus se divorciou de Maria Madalena para casar com a bispa Lídia.
E a mulher que Jesus livrou do apedrejamento não era nenhuma das três Madalenas citadas no Novo Testamento.
Outro besterol: os apóstolos misóginos. O único que não casou foi João, o Evangelista. Antonio Piñero, citado por Antonio Gonçalves Filho, escreve in O Outro Jesus: “Tanto pelos documentos canônicos quanto pelos documentos que são a base deste história (os apócrifos), sabemos que Jesus passou sua vida pública rodeado por mulheres. Isso não era comum entre os escribas, legistas e rabinos do século I na Palestina, onde as mulheres não tinham acesso ao estudo da Lei, à pregação da sinagoga, nem à participação em atos públicos”.
A volta do homem religioso
Desde meados do século passado, nos meios intelectuais, fala-se da volta do homem religioso. Inclusive como estudo principal da filosofia. Escreve René Girard: a violência é o alicerce de toda sociedade; o ritual religioso é o alicerce de toda cultura; a Revelação cristã alterou radicalmente esses fundamentos, substituindo a violência pelo Amor.
Ensina Girard: a violência é criada pelo desejo mimético, a imitação; nós só desejamos aquilo que o outro deseja. Mais perto de nós, na sociedade de consumo, são os nossos vizinhos que indicam o objeto que, por imitação, desejaremos. Esse desejo mimético é explorado pela publicidade. Da mesma maneira que descaracteriza o Natal, transformando-o em uma feira de objetos descartáveis.
Todas as páginas na revista Época estão dedicadas ao mercado de consumo. Em entrevista a Guy Sorman (Os verdadeiros Pensadores do Nosso Tempo), diz Girard: A questão fundamental que se apresenta a toda a sociedade é canalizar o desejo mimético e a violência que ela acarreta. Como? “Fazendo desviar essa violência para um inocente: o bode expiatório. É o sacrifício do bode expiatório que vai deter a crise”.
Escreve Sorman: “No sistema de Girard, o Novo Testamento nos fornece a chave do código universal das civilizações. Enquanto, há três séculos, a ciência se obstinava em reduzir a religião a interesses, medos, ignorância, Girard nos diz que os Evangelhos explicam cientificamente toda a história humana. E é ainda a partir dos Evangelhos que, segundo ele, a história evolui. Pois Jesus não é um bode expiatório igual aos outros? Vítima inocente e bode expiatório voluntário, ele próprio se autodesignou. Sua morte significa e anuncia que, depois d’Ele, o próprio mecanismo do sacrifício, da unidade social fundada na violência, não funciona mais. A crucificação é o ultimo dos sacrifícios que torna todo sacrifício absurdo”.
Na entrevista a Sorman: “Nesta nova `necessidade´da história que se aproxima do fim dos tempos, a arma nuclear ocupa, para Girard, um lugar especial, já que doravante ela torna a violência quase impossível. Não seria ela a última etapa antes que os homens abram realmente os olhos e substituam a lógica da violência pela necessidade do perdão, como lhes pede o Cristo?”
O real e a visão do futuro: a fala profética
Em 1981, Michel Serres concedeu entrevista ao Le Monde. Pergunta Jean-Claude Guillebaud: – O Senhor diz que os filósofos devem salvar o conhecimento com um ato fundador. Mas para fazer o que com isso?
Serres: – O conhecimento estava de tal forma misturado ao poder e à violência, que o fim dessa história foi Hiroshima. E ainda é Hiroshima. Ora, se há desafios na cultura, na filosofia, é no sentido de descobrir as condições de algo que vá além dessa data de vencimento, sempre adiada mais alguns milímetros. Nossa história é esse prazo de Hiroshima. Que é que fazem os políticos atualmente? (…) Por que eu sou filósofo? Por causa de Hiroshima, sem dúvida nenhuma. Hiroshima foi o ato inaugural que organizou toda a minha vida e que me fez dizer: vou retirar-me sempre diante da violência para tentar pensar e agir de outra forma.
Guillebaud: – Seus textos e suas expressões estão sempre repletos de referências evangélicas. No entanto o senhor nunca afirma ser cristão.
Serres: – Acredito fundamentalmente que, em matéria de antropologia, é a história das religiões que têm os conteúdos mais concretos, carnais, globais. (…) Por outro lado, não sei bem o que quer dizer `crer´, `crença´, `fé´… Gostaria realmente de saber, mas não sei.
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Escrevi em 23/12/2006. Transcrito do meu blogue Jornalismo de Cordel in Comunique-se