████████████████ Leia na íntegra o relato do Defensor Público, Vinícius Paz Leite, o qual acompanhou a atuação dos Advogados Ativistas durante o Segundo Ato Contra a Copa em São Paulo:
PANELA DE PRESSÃO (A DELEGACIA)
Fui procurado por uma advogada que se formou comigo, pois havia pessoas intimadas para prestar depoimento no Departamento Estadual de Investigações Criminais – DEIC, da Polícia Civil do Estado de São Paulo, especializada no combate aos “grupos criminosos organizados”. Depoimentos em massa marcados, coincidentemente, para às 16:00 hs do dia 22/02/2014, sábado, no mesmo horário e dia da manifestação ocorrida na capital paulista contra a copa.
Chegando à delegacia, ouviam-se os ruídos da panela de pressão. “Ei, aonde vai”? “Vou entrar”. “Você é o quê”? “Defensor. Defensor”? “Por favor, queira se registrar”! Perguntei-me o que seria mais inteligente, fazer valer as prerrogativas e aumentar ainda mais a pressão ou, como o objetivo era outro, fazer o que eu fiz. Engoli seca a primeira violação à prerrogativa do Defensor de obter livre ingresso em estabelecimentos prisionais, independente de prévio agendamento (art. 44, VII, Lei Complementar Federal 80 e artigo 162, inciso X, Lei Complementar Estadual 988).
Ao entrar na sala de depoimentos, o bico da panela já estava apitando. A escrivã faltava com urbanidade ao interrogar outra depoente não assistida por mim, bradando “se você está cansada de estar aqui, imagine eu, trabalhando num sábado à tarde!”.
Até a policial não concordava em perder um sábado à tarde para colher depoimentos.
Você possui tatuagens? Você tem técnicas de camuflagem? Usa cocaína, heroína, crack, maconha ou outras drogas? Anda de preto nas manifestações? Anda de máscara nas manifestações? Qual a sua opinião sobre os Black Blocs? Você tem alguma ligação com os Black Blocs? A pressão da panela aumentava ainda mais, sentia cheiro de DOI CODI no ar. Eu estava lá justamente para diminuir essa pressão. Orientei a pessoa que iria prestar depoimento, descrevendo, como é, geralmente, a prática inquisitiva, e adverti que o ambiente estava sob muita pressão, além das orientações de praxe sobre seus direitos.
Ao término, após leitura e assinatura do termo de declaração, fiz uma requisição verbal para obter cópia tanto do depoimento por mim acompanhado quanto do tão famoso e ao mesmo tempo tão desconhecido inquérito policial 1/2013, que originou aquelas intimações em massa. Houve receio por parte de um dos delegados, que disse ser inviável a extração de cópias, e se eu quisesse mais informações que procurasse o delegado chefe.
Mais uma prerrogativa estava para ser violada, a de requisitar e obter informações necessárias ao desempenho de minhas funções. A panela de pressão ditatorial estava para explodir, quando recebi o telefonema de outra advogada, aos gritos, me comunicando que estava sendo ilegalmente detida numa “panela de Hamburgo”.
A PANELA DE HAMBURGO (AS RUAS)
Fui imediatamente ao local das manifestações acompanhado de três Advogado(a)s Ativistas. Ao chegar, deparei-me com pessoas correndo em direção contrária, barulho de tiros de bala de borracha e bombas de gás lacrimogêneo lançadas em nossa direção. Tudo isso em frações de segundos, sem qualquer motivo aparente. Pela primeira vez senti queimar uma bomba de gás lacrimogêneo em volta dos olhos. Não presenciei, em qualquer momento, dano ao patrimônio público ou privado, só violações às integridades físicas dos manifestantes pacíficos perpetradas pela polícia militar em formação de guerra.
Conseguimos, após dar a volta ao quarteirão, chegar perto da “panela de Hamburgo”. Os policiais desse cordão de isolamento, que empunhavam cassetetes e escudos, sem exceção, TODOS ELES, ESTAVAM SEM IDENTIFICAÇÃO. Violação frontal à obrigatoriedade prevista na Constituição e nos tratados de Direitos Humanos de identificação daquele que efetua a prisão (art. 5º LXIV).
Chamei o comandante e nesse meio tempo eu pude perceber o que estava realmente acontecendo. Advogados colocados, com mata leão, de dentro para fora da panela de policiais, que urravam.
Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego. Também não me importei. Agora estão me levando. Chegou a nossa vez.
Havia pessoas desmaiadas no lado de dentro do cinturão formado com escudos translúcidos, que insistiam em tentar tapar a visão.
Fui impedido de atravessar o cinturão e acompanhar a prisão realizada sem qualquer indício de cometimento de crime (fumus comissi delici). Prisão sem individualização de qualquer conduta, prisão coletiva, prisão sem ordem judicial.
Os direitos civis mais basilares foram violados. O artigo 5º da Constituição da Republica Federativa do Brasil foi temporariamente suspenso pelo Governo. Inexistiam os direitos de não ser obrigado a fazer ou não fazer algo em virtude de lei, de não ser submetido a tratamento degradante ou desumano, o livre exercício da liberdade de pensamento, a liberdade de consciência, a liberdade de expressão, a vedação de ser limitado em direitos por exercício de convicção política, o livre exercício da profissão – (no caso dos jornalistas que foram detidos e achincalhados por estarem filmando toda a arbitrariedade) – , o livre direito de locomoção, a liberdade de reunião para fins pacíficos de livre manifestação, a vedação de qualquer prisão, salvo em caso de flagrante delito ou ordem judicial, dentre outras inúmeras garantias suspensas inconstitucionalmente. Vale lembrar que a maioria dessas suspensões de direito, até no estado de sítio, são vedadas.
A máscara da democracia burguesa está caindo. Prenderam ilegalmente brancos, professores, advogados, todos aqueles que supostamente “não cometem crimes”, tal qual ocorre com pretos e miseráveis confinados nos guetos brasileiros, alguns acusados de pequena pilhagem, outros perseguidos por comerciar ilegalmente psicoativos.
A classe média, incluindo os próprios jornalistas, se assustou ao ser enquadrada como inimigo interno. Jornalistas sentiram o exercício real do poder punitivo na pele, um sistema que age sempre de forma discriminatória, neutralizante e eliminatória, a partir da negação de condição de pessoa ao inimigo, ou seja, o inimigo da vez é visto como uma coisa ou ente perigoso. O exercício do poder punitivo contra os manifestantes nada mais é que o alargamento de uma política criminal esquizofrênica pautada na emergência de um mal que põe em cheque toda a existência de toda a sociedade, como discurso declarado. Contudo, de forma latente, combate as ameaças ao do lucro de muito poucos!
Na cracolândia, essa mesma polícia passava com viatura por cima de consumidores miseráveis de crack. Essa mesma polícia tortura e prende ilegalmente pretos miseráveis, todos os dias, nos bolsões de pobreza da cidade. É a mesma polícia que forja drogas nos meus assistidos cotidianamente nos autos dos processos criminais analisados. Essa mesma polícia torturou na ditadura. Esse mesmo poder punitivo foi exercido em larga escala para possibilitar o grande investimento que era a maior colonização forçada do planeta, protagonizada por negros africanos vindos para o Brasil.
Esse mesmo poder punitivo foi utilizado nas galés para manter o lucro do capital mercantilista na expansão ultramarítima, com as condenações a remar até à morte, sob chibata.
É esse o poder punitivo que suspende garantias em nome do lucro dos patrocinadores da FIFA. Finalmente, é esse o mesmo poder punitivo que violou, no dia 22/02/2014, frontalmente a maioria das prerrogativas criminais de um Defensor e realizou prisões ilegais empregando a tática de formação militar de panela de Hamburgo, proibida pelo próprio regimento da Polícia Militar, encurralando manifestantes pacíficos, isolando do contato com o Defensor, batendo, prendendo sem identificação.
Se estivéssemos na vigência da suposta Lei antiterrorismo, proposta no Senado, conforme artigo 2º, (“Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa. Pena: reclusão, de 15 a 30 anos”), os policiais não identificados, ofendendo a integridade física, a saúde, a privação de liberdade de pessoa, provocando terror e pânico, todos esses policiais, o capitão, o secretário de segurança e o governador estariam respondendo a processo penal por terrorismo.
Mas como não foi um infeliz rojão que acertou letalmente um cinegrafista da Bandeirantes, provavelmente não haveria domínio do fato por parte do alto escalão do Governo paulista em caso de condenação por violações aos Direitos Humanos. Soltar um rojão à ermo, quando acerta jornalista, seria um evento mais controlável que as ordens do Governo para reprimir manifestantes pacíficos, no Brasil da FIFA.

A guarda se prepara para mais um dia de trabalho, veste sua farda e confere se os utensílios da profissão estão disponíveis para o auxílio do ofício. A estratégia militar é “fique calado e não conteste!”
Já nas ruas, a guarda mantém a formação e o alinhamento de seus escudos, fecham a via e cercam a população, munida de seus implacáveis cassetetes, prontos para registrar os corpos gritantes e inconformados. Conflito iminente, dor angustiante.
A guarda avança pra cima, sem direitos humanos.
FOTO: Fotógrafos Ativistas
TEXTO: Marcos Holanda