AS VEIAS DO CANTO
Creio na morte
não na sua vitória
a poesia está à prova, como o homem
o canto não acaba, se renova
no coração de quem escolhe
a própria fome
Nada muda no sol que o meu corpo não receba
Aberto como um poço para a sede
escrevo duros poemas
na terra que treme
e sacode a caneta
Só o canto fala por si mesmo
escutem seu bater de veias
ele vingará, como as colheitas
cercadas de amor e de firmeza
VIAGEM
Perdidos
pegamos as mochilas
e a vida se fez visita
Batemos no ombro da madrugada
e ela espreguiçou-se pelo mundo
com um brilho pequeno
de quem se acaba
Nos lançou beijos cor de barro
e morreu depois de puxar o sol pelos cabelos
Chegamos nos caminhões de estrada
com apertos de mão e palavras
À procura de um vôo
suado e sem retorno
Chegamos sempre ao anoitecer
quando as cidades se armam
com feras de aço e chapas brancas
com chaves que fecham portas de ferro
O futuro nos saudou
mas o passado
sujou nossos abraços
Voltamos sepultados
Estávamos a um passo
da liberdade
CARTA AO COMPANHEIRO EXILADO
Aqui, o sol obstinado
ainda banha a folhagem
a chuva nos visita
e deixa o arco-íris quando parte
As cores da saudade
abriram a palma
de nossa mão pálida
e a vontade de buscar-te
soltou-se como um raio
Descobrimos que era muito tarde
Agora, que a madrugada se caba
e o sol nos dá na cara
não sabemos o que fazer
com esta ressaca
Batem nas portas e revistam roupas e pacotes
Estamos na praia do naufrágio
Do mar vieram boiando coisas mortas
entre elas
nossos sonhos e emboscadas
O DESESPERO É UMA FLOR
O desespero é uma flor
que come carne
e arde no meu peito de pastor
Levei uma surra de navalhas
preso num eterno elevador
Num sanatório de sonho
tenho a mão sangrada
Quero o silêncio
de uma estrada nova e calada
Quero a luz do sol e o fim do nojo
quero maio o ano todo
e a dor como um papel em branco
DIGO PARA MIM
Digo para mim: fica tranqüilo
as coisas não são tão terríveis
és um anjo de asas brancas
o sol dessa manhã cinza
Digo para mim: não tema
há muito que te prenderam
estás acostumado ao calabouço
ver o mundo será tão pouco
comparado À solidão que aceitas
Sossega, tudo vem, uma larva no pescoço
um acidente, o amor de quando em pouco
Por isso bebe a água, come a carne
a falta de um almoço não te mata
deixa o tempo engatilhar sua arma
Nasceste para durar pouco
ou não durar nada
mas durar é secundário
Antes de partir
deixarás pegadas na areia
para a memória do vento