Bruno Dorigatti entrevista Benjamin Mose biógrafo de Clarice Lispector

- Clarice, por Cleoskull
Clarice, a escritora falhada
Clarice Lispector foi gerada para salvar sua mãe de uma doença incurável na época. E falhou. Segundo Benjamim Moser, norte-americano que lançou este ano uma alentada biografia da enigmática escritora brasileira nascida na Ucrânia, foi esta culpa que ela carregou por toda a vida, cuja missão não seria outra que tentar, pela palavra escrita, se redimir. Se conseguiu alcançar seu objetivo, talvez nunca saibamos. O que fica, porém, é uma obra única, hoje devidamente canonizada e, a bem da verdade, que já estreou chancelada pela crítica e premiada com seu livro de estréia, Perto do coração selvagem. Sua obra nunca se preocupou com enredos e histórias, mas com uma investigação interior dos personagens. Foi inclusive uma das primeiras escritoras a publicar no Brasil o que seria chamado de obras de matiz psicológica, mesmo sem conhecer Katherine Mansfield ou ter lido James Joyce, com quem foi comparada.
Nascida no pequeno vilarejo de Tchetchelnik, na Ucrânia, Clarice e sua família – pai, mãe e as duas irmãs mais velhas – estavam em fuga. Judeus, pairava sobre eles a ameaça dos pogroms que varreram a então Rússia após o final da I Guerra Mundial. Sua mãe, Mania, teria contraído sífilis – na época sem cura, que só viria com a descoberta da penicilina – depois de ter sido estuprada por soldados russos. Segundo uma crença da região, uma gravidez poderia curá-la. Com essa finalidade, Haia – esse o nome de batismo de Clarice – foi concebida. Mas não deu certo. A família conseguiu chegar ao Brasil em 1922, estabelecendo-se em Maceió, Alagoas, onde moravam parentes da mãe de Clarice. Depois se mudaria para Recife (PE), onde Mania morre em 1930, e então, o viúvo Phinkas, que aqui viraria Pedro, fixa-se no Rio de Janeiro.
Clarice, (leia-se Clarice vírgula) é a alentada biografia da escritora, que tomou cinco anos de pesquisas, viagens e leituras do jovem Benjamin Moser, norte-americano hoje estabelecido na Holanda. Moser é crítico e tradutor, tem 33 anos e fala seis línguas, entre elas o português. Com o título original de Why this world, a biografia foi lançada nos Estados Unidos pela Oxford University Press, recebendo elogios do The New York Times, que o considerou um dos 100 melhores livros de 2009, do semanário inglês The Economist, além de outras publicações como London Times e a revistaBookforum.
No Brasil, a biografia ganhou bela edição da CosacNaify, em capa dura e 648 páginas, das quais 558 são de texto e as demais, de notas, bibliografia, agradecimentos e índice remissivo. Para contrastar com a belíssima Clarice Fotobiografia, lançada em 2008 pela Edusp e a Imprensa Oficial de São Paulo, de Nádia Batella Gotlib, a edição brasileira do livro de Moser traz apenas uma imagem, a clássica foto de Clarice de perfil, em seu apartamento no Leme, Rio de Janeiro, escrevendo à máquina, feita por Claudia Andujar, em 1961. Nádia também é responsável por outra biografia de fôlego da autora de A hora da estrela e A paixão segundo GH. Clarice, uma vida que se conta, lançada originalmente em 1994 pela Ática, teve cinco edições, todas esgotadas. Para esta reedição pela Edusp, lançada em dezembro de 2009, a autora fez uma revisão e ampliação de sua obra. NaFotobiografia ela havia reunido 800 imagens, das quais a maior parte é inédita.

Foto de Claudia Andujar (Clarice)
Ambos os livros focam e se utilizam tanto de dados biográficos como das obras da escritora e sua fortuna crítica, que dialogam entre si. Moser, porém, aprofunda o que classifica de aspectos do misticismo judaico no texto de Clarice, cuja origem estaria em sua ascendência judaica, embora ela própria desconfiasse da existência de um deus onisciente e onipotente. “Ela quer reconstruir o mundo. E reconciliar o homem com Deus. É uma coisa de uma missão absolutamente espantosa. Acho que é isso que a gente sente quando lê Clarice. Porque não é fácil ler Clarice às vezes”, afirma ele nessa entrevista exclusiva ao SaraivaConteúdo.

Foto de Stefan Hess (Moser)
Moser esteve no Brasil em novembro para o lançamento de Clarice, (Cosac Naify) em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, quando nos concedeu esta entrevista. E se emocionou com a recepção que teve dos apaixonados pela a obra da escritora. “É uma satisfação imensa para mim, porque é uma pessoa que eu amo muito. E quando amamos uma pessoa, queremos que os outros também a amem. E é uma satisfação enorme ver que eu não sou o único. E também não sou o último. Ainda bem”, finaliza. Por fim, ele sintetiza bem a sensação que a escritora provoca: “É difícil se livrar de Clarice”. Moser fez um belo ensaio, uma obra de fôlego e detalhismo impressionantes. Com ele voltamos à difícil época do pós-guerra na Ucrânia, passamos pelo Nordeste brasileiro do início do século XX, conhecemos o meio cultural e jornalístico do Brasil e sobretudo do Rio de Janeiro, então capital, em meados do século passado, viajamos à Europa do pós-guerra. Uma obra de fôlego, da altura e da importância de Clarice Lispector.
Você veio para o Brasil a primeira vez em 1996?
Benjamin Moser. Eu estava estudando português na faculdade, nos Estados Unidos, e vim para o Brasil para passar um semestre na PUC do Rio de Janeiro. Foi a primeira viagem que fiz ao país. Conheci muitos lugares, fui para o sul, para o nordeste. Depois disso, acabei voltando muito. Agora me sinto totalmente em casa aqui. Mas a cada viagem tem uma coisa nova que eu não esperava. Agora é essa coisa de ser entrevistado, isso nunca me passou pela cabeça, mas estou gostando.
Como surgiu o interesse por Clarice Lispector?
Moser. Surgiu na faculdade. Antes de eu vir para cá, li uma obra dela em um curso de literatura brasileira, A hora da estrela. Tive que ler por obrigação, e foi essa obra que me segurou, e que nunca mais me abandonou. Mas eu não sabia que 15 anos depois eu estaria aqui, com esse livro, com a paixão por ela, pela obra dela, que nunca parou de crescer.
E como foi essa decisão de fazer uma biografia sobre ela?
Moser. Não foi algo imediato, não, só dez anos depois me decidi por escrever essa biografia. Adoro Clarice, como adoro muitos escritores e artistas. Tem muita gente de quem sou fã, mas a idéia foi se impondo aos poucos. Eu pensava: “É uma pena que ninguém faça nada com Clarice fora do Brasil”. Aqui, ela é muito famosa, todo mundo conhece. Mas fiquei esperando, esperando, e ninguém fez. Então por que não faço eu? Alguém tinha que fazer. Porque é um assunto que tem que ser divulgado, e então eu fiz. E estou muito feliz em ver que chegou até a terra dela.
Como foi a sua pesquisa?
Moser. Fui a muitos lugares, não só no Brasil. Fui para a Ucrânia [onde Clarice nasceu], um país totalmente inesperado, fascinante. E na Europa: Itália, Suíça, Inglaterra, França, além dos Estados Unidos. Ela viveu em muitos lugares. E também aqui no Brasil, viveu em Alagoas, Pernambuco, Rio de Janeiro. O marido dela era diplomata. Eu vivia nessas viagens, e adorei, gosto de viajar. É um bom motivo. Fui parar até na Moldávia. Quando da fuga dos pais de Clarice da terra natal, eles ficaram um tempo na Moldávia. Acho que sem Clarice eu nunca teria visto aquele país. Mas gostei, foi legal.

Clarice Lispector, criança no Recife
Você conseguiu identificar ainda conexões de Clarice com esses lugares?
Moser. Tem lugares que são só para cheirar, digamos, só para ver. Na Ucrânia, por exemplo, faz 90 anos que eles saíram de lá. Depois de tudo o que aconteceu, não sobra nada de traços pessoais. Mas você pode ver, por exemplo, em Tchetchelnik, a aldeia onde ela nasceu, uma coisa muito curiosa. É uma região de fronteira, então sempre foi muito violenta, desde o século XVII. Tudo o que aconteceu com a família dela, depois da I Guerra [1914-1917], era comum naquela região. Na cidadezinha onde ela nasceu, tem túneis subterrâneos enormes. É um lugar muito pequeno, mas embaixo de todas as casas tem um sistema de túneis enormes, com três, quatro metros de altura, até com rios. Pois servia para a cidade toda se refugiar, inclusive os animais, bois, cavalos etc. E a cidade esvaziava quanto tinha ataques, o que era muito freqüente. Era interessante contextualizar a situação de guerra em que ela nasceu. Um lugar que aparentemente é muito tranqüilo. Mas quando conhece in loco, você vê que era um lugar de perigo.
É uma coisa muito interessante essa coisa subterrânea que ela tem e ajuda a gente a alcançar dentro de nós também. É um símbolo muito interessante para a obra dela. Porque ela foi cavando, cavando, cavando, cada vez mais para baixo. Não é um fato novo na vida dela, mas é uma sensação muito interessante para o biógrafo ver o lugar onde essa pessoa nasceu. Um lugar que, para os brasileiros e para mim, é difícil de imaginar. Não tem nada a ver com o Brasil, ou com nada. É um lugar muito isolado, muito pobre, mas que tem uma coisa muito fascinante.
O que te surpreendeu mais nessa pesquisa?
Moser. Em geral, tinha tantas coisas interessantes na Clarice. E uma das coisas que acho mais espantosa… bom, tem muitas. Se eu tivesse escrito esse livro como um romance, nenhuma editora teria publicado, porque é bizarro demais. É uma vida exótica demais. Ela conheceu muita gente, no Brasil e lá fora. Viajou, presenciou muitíssimas coisas. Se você for fazer um romance com uma pessoa como ela, não daria, porque as pessoas não acreditariam. A coisa mais espantosa é que ela consegue escrever a própria morte. Ela encena a morte durante anos, ela está querendo matar as personagens dela. E, aos poucos, ela não consegue. Nos anos 1970, depois de se machucar muito num incêndio, ela vai, aos poucos, se apagando fisicamente. Só que a obra dela vai florescendo de maneira absolutamente esplêndida. Ela quer morrer, claro, mas não pode deixar as personagens morrerem, senão ela vai ter que morrer. E, finalmente, ela deixa Macabéa morrer, em A hora da estrela. E logo depois de publicar o livro, ela vai pro hospital e morre, ela própria. Então, a coisa mais interessante é que a obra e a vida não têm um vínculo assim de alguém que está contando histórias. É uma necessidade absolutamente vital que ela teve, desde menina.
É dífícil se livrar de Clarice.
Havia escritores aqui, como Caio Fernando Abreu, e vários outros… O Caio Fernando teve que se mudar de cidade para escapar da obra dela. Ela já estava morta. Mas é um impacto muito forte, eles dizem que não é literatura, é bruxaria. O que acho muito exagerado, mas acho que entendo o que querem dizer com isso. Não tem como comparar com outros escritores. O aspecto místico – dou muita ênfase no livro aos aspectos do misticismo judaico, muito presentes na obra dela – faz com que a obra tenha uma missão sagrada, como ela própria teve. Porque ela foi gerada para curar a mãe de uma doença incurável. E fracassou. Mas, menina ainda, contava histórias mágicas com finais milagrosos, aonde algum santo chegava e salvava a mãe. Uma prima dela me contou isso no Recife. Só que essa missão fracassa, porque a mãe teve uma doença muito séria, que não se cura com historinhas de uma menina. A origem da escrita dela está nessa missão sagrada. Então, nunca é só uma literatura de contar piadas, contar casos, fazer descrições de morros e praias. Não é por aí. Ela quer reconstruir o mundo. E reconciliar o homem com Deus. É uma coisa de uma missão absolutamente espantosa. Acho que é isso que a gente sente quando lê Clarice. Porque não é fácil ler Clarice às vezes.
Mas você acha que ela tinha essa dimensão, essa percepção sobre ela mesma, como missionária?
Moser. Ah, ela fala, diz isso. Ela diz que foi gerada para curar a mãe, que fracassou. Ela se descreve como a escritora falhada. Mas, ao mesmo tempo, um homem me disse em uma livraria em São Paulo, que, apesar desse fracasso, ela salvou e curou muita gente. Sem saber. Acho que hoje em dia ela é lida, no Brasil e no mundo, como uma amiga, que está muito próxima da gente. Não é uma imagem distante, não é um mito. Embora tenha esse lado mitológico dela, quem gosta de Clarice, na verdade sente mais amor, paixão. [silêncio] Tentei colocar esse lado humano aqui, mais do que o mitológico. Porque o mitológico é engraçado, tem historinhas divertidas sobre ela, e muitas. Mas não quis isso.
E como é lançar o livro no Brasil?
Moser. É um prazer tão grande estar aqui no Brasil, na terra dela, falando com as pessoas. Porque eu fiz o livro para torná-la mais conhecida na Europa e nos Estados Unidos. Então, tenho passado por muitos países falando dela, mas é sempre uma introdução, as pessoas não sabem nada sobre ela. O que era a minha idéia, levar essa pessoa para outras que não a conheciam. Mas aqui, em um país onde ela é tão amada e tão conhecida, as pessoas vêm realmente apaixonadas para falar sobre ela. É uma satisfação imensa para mim, porque é uma pessoa que eu amo muito. E quando amamos uma pessoa, queremos que os outros também a amem. E é uma satisfação enorme ver que eu não sou o único. E também não sou o último. Ainda bem.