por Noélia Brito
A Constituição Federal traz em seu bojo um sistema protetivo das garantias e direitos individuais e coletivos que inclui de maneira expressa tanto o direito à informação, passando pelo direito à livre manifestação do pensamento e culminando com a vedação a toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística e ainda a qualquer restrição à manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo. Tais direitos são previstos nos arts. 5º, IV, IX, XIV, XXXIII e 220, § 1º, § 2º, § 6º, da Constituição da República. Nem por lei, é de se admitir o estabelecimento de censura em nosso país, por expressa vedação constitucional.
Entretanto, alguns magistrados brasileiros, em especial, em Pernambuco, têm preferido ignorar o texto constitucional, para conferir a alguns agentes públicos e figuras políticas absurda blindagem, atribuindo-lhes verdadeira imunidade, sequer deferida a quem ocupa o cargo político máximo da Nação, que é a presidência da República.
As decisões de alguns juízes e desembargadores pernambucanos chegam ao escárnio institucional de proibir toda e qualquer referência sobre qualquer notícia que diga respeito a esses cidadãos acima da lei e que ocupam cargos importantes na estrutura política de nosso Estado.
As decisões em questão transformaram seus protegidos em verdadeiros intocáveis, quando nosso sistema constitucional veda a criação de cidadanias privilegiadas. Por vontade desses julgadores, membros do Poder Judiciário e do Poder Executivo e até marqueteiros de políticos e partidos foram alçados à qualidade de majestades, onde qualquer crítica ou notícia que não lhes seja elogiosa ou favoráveis devem ser implacavelmente proibidas, sob pena de pagamento de pesadas multas, para que a população em geral permaneça ignorante sobre a realidade que se oculta nos diários oficiais, que ninguém lê e nos sites de acompanhamento judicial, que ninguém visita.
Não satisfeitos em mandar retirar do ar notícias que gestores descompromissados com a transparência querem ocultar, esses juízes e desembargadores ainda instituem ignominiosa censura prévia contra os cidadãos que ousam exercer sua cidadania e denunciar, exigir e cobrar dos gestores públicos transparência da administração de bens, recursos e serviços públicos.
A situação em Pernambuco de censura ilegal e inconstitucionalmente por alguns membros do Judiciário local contra a cidadania é tão grave que já começa a merecer uma denúncia ao CNJ e aos órgãos de proteção aos direitos humanos, órgãos estes que, este ano, já colocaram o Brasil no banco dos réus dos direitos humanos internacionais, justamente por violar tratados internacionais sobre a liberdade de expressão.
As acusações contra o Brasil tramitam na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA e foram feitas pela ONG internacional “Article 19”, que atua em defesa à liberdade de informação e de imprensa em todo mundo, durante audiência realizada pela Comissão no último dia 29/10, em Washington, nos Estados Unidos.??
A denúncia decorre da permanência dos crimes de calúnia, injúria e difamação em nosso sistema penal, quando as supostas vítimas são ocupantes de cargos públicos.??
Se a legislação não for corrigida para que o Brasil se adeque aos tratados internacionais que ele mesmo assinou, a “Article 19” pretende processar o país também na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que funciona em San José, na Costa Rica.??
De acordo com a “Article 19”, no Brasil, os chamados crimes contra a honra têm sido usados por autoridades públicas e ainda com a cumplicidade de alguns membros do Judiciário, como “instrumento político de intimidação”, nitidamente para cercear a liberdade de expressão e de livre informação.
Ainda segundo a ONG “Article 19”, em sua denúncia contra o Brasil, tem-se criado uma verdadeira “indústria do dano moral” por parte de “corruptos e ladrões do dinheiro público” para intimidar jornalistas e ainda enriquecerem com o resultado desses processos.
Outra aberração que foi denunciada pela própria CIDH, com relação ao Brasil, foi a manutenção do crime de desacato na nossa legislação penal, já que esta previsão se incompatibiliza com as Convenções da OEA e se prestam principalmente à criminalização dos movimentos sociais.
Não bastasse a manutenção de institutos criminalizadores de há muito repugnados pela Comunidade Internacional porque atentatórios à dignidade da pessoa humana, magistrados têm feito vistas grossas ao que a própria Constituição repudia. Para se ter uma ideia, na ADI nº 4451 MC-REF/ DF, o Supremo Tribunal Federal definiu que “Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca.”
Vê-se de plano que não estamos a falar de conceitos vagos ou de questões que ainda estejam sendo discutidas pelos Tribunais Superiores. O que temos é já uma jurisprudência consolidada que afirma ser proibido a qualquer juiz, desembargador ou ministro deste país censurar previamente o que qualquer cidadão, seja jornalista ou não, poderá ou não dizer ou expressar, pois qualquer análise sobre o alcance ofensivo da manifestação do pensamento de um cidadão sobre a esfera individual de outro cidadão, notadamente em se tratando de autoridades públicas, só pode se dar a posteriori.
Se a Constituição veda, proíbe, com todas as letras que uma lei limite previamente o conteúdo de uma matéria jornalística, já que a censura foi abolida de nossas vidas juntamente com a Ditadura civil-militar de péssima memória, muito menos se pode conferir ao Poder Judiciário, escravo que é da Constituição e da legalidade, esse poder.
O Supremo Tribunal Federal se pronunciou de maneira muito forte e clara no sentido de que ao Estado, por qualquer de seus órgãos e aí se tem por incluído, obviamente, os órgãos do Poder Judiciário é proibido, “definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, a nossa atual ordem constitucional “autoriza a formulação do juízo de que o caminho mais curto entre a verdade sobre a conduta dos detentores do Poder e o conhecimento do público em geral é a liberdade de imprensa. A traduzir, então, a ideia-força de que abrir mão da liberdade de imprensa é renunciar ao conhecimento geral das coisas do Poder, seja ele político, econômico, militar ou religioso.”
O Supremo ainda estabelece que a “Magna Carta Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como a mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Os jornalistas, a seu turno, como o mais desanuviado olhar sobre o nosso cotidiano existencial e os recônditos do Poder, enquanto profissionais do comentário crítico. Pensamento crítico que é parte integrante da informação plena e fidedigna.”
Na ADI de que ora nos socorremos, brilhantemente relatada pelo Ministro Carlos Ayres Brito ainda podemos citar que “o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu art. 5º, inciso V. A crítica jornalística em geral, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura. Isso porque é da essência das atividades de imprensa operar como formadora de opinião pública, lócus do pensamento crítico e necessário contraponto à versão oficial das coisas, conforme decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal na ADPF 130.”
Aliás, vale mencionar a Representação nº 830, Acórdão de 06/09/2006, da Relatoria do Juiz Alfredo Jambo, quando em exercício no TRE, segundo o qual, “A imagem do homem público, desde que não se refira à sua esfera íntima, mas condicionada à gestão de seus atos administrativos, e que não transborde para a calúnia ou injúria, é permitida na propaganda eleitoral.”
Em outra decisão também do TRE de Pernambuco, o Desembargador Marco Maggi, chega a definir como “abominável” a censura prévia mediante a proibição de veiculação de críticas. Imaginemos o que o nobre Desembargador do próprio TJPE não está pensando ao assistir o nome da Corte Estadual envolto em casos de censura prévia a qual chegou de taxar como “abobinável” (Representação nº 303, Acórdão nº 303 de 16/09/2002).
As decisões de alguns magistrados e desembargadores do TJPE, criando nefanda censura prévia contra cidadãos, de modo a blindar ocupantes de cargos públicos, portanto, destoam daquelas da maioria dos magistrados do mesmo órgão judicante, o que reforça seu caráter de fruto de uma situação de exceção que se tem instalado em nosso Estado.
As decisões dos censores judiciais chegam ao absurdo de proibir a veiculação de “qualquer notícia, sobre qualquer assunto” e até de se pronunciar o nome e o cargo ocupado pelos gestores públicos ou legisladores beneficiários. Além de todos os dispositivos constitucionais jea mencionados, é claro que nem a publicidade e muito menos a transparência estão sendo prestigiados em nosso estado, seja pelas autoridades que censuram, via justiça, para esconder seus atos, seja pelos magistrados que acatam seus pedidos de censura.
O Pleno do STF também rechaçou, através da ADPF 130, a malfadada e vetusta prática que temos observado aqui em Pernambuco, de censurar cidadãos para blindar autoridades públicas que deveriam ser as primeiras a serem alvo de cobrança por mais e mais transparência de seus atos. Diz o Supremo que “não é jamais pelo temor do abuso que se vai proibir o uso de uma liberdade de informação a que o próprio Texto Magno do País apôs o rótulo de ‘plena’ (§ 1 do art. 220)”. O Supremo, aliás, chama-nos a atenção para o fato de que não há de se admitir censura prévia nem mesmo se oriunda do próprio Judiciário: “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica.”
Na mesma decisão, também relatada pelo Ministro Ayres Britto, o ministro Marco Aurélio reafirma o caráter ditatorial da censura governamental, seja ela oriunda de qualquer dos poderes, inclusive do Poder Judiciário: “a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”.
As decisões de alguns juízes e desembargadores do TJPE que censuram cidadãos em suas críticas e publicações sobre processos criminais, ações de improbidade, investigações pelo Ministério Público de tráfico de influência, entre outros crimes ou mesmo de atos de gestão administrativa, tais como dispensas e inexigibilidade de licitações milionárias têm proliferado em nosso Estado e de acordo com o Ministro Marco Aurélio do STF são “a expressão mais odiosa da face autoritária do poder público.”
A cidadania, assim, vê-se em perene ameaça de ser vítima de novos ataques à liberdade de expressão e informação, tão caras à nossa jovem democracia. Como destacou o relator da ADCP nº 130, Ministro Ayres Britto, que decidiu pela não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição de 1988, o “pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e real alternativa à versão oficial dos fatos’.
Merece nosso mais absoluto repúdio os atentados que têm sido praticados contra nosso regime democrático, via Judiciário e em flagrante desrespeito à própria Constituição e em afronta escandalosa à Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com o intuito flagrante de blindar aqueles que deveriam antes de qualquer outro cidadão, prestar contas à sociedade, em razão dos cargos públicos que exercem ou que um dia exerceram. Quando é o próprio Judiciário quem fragiliza a democracia é hora de começarmos a nos preocupar.
(Transcrito do Blog de Jamildo Melo)