Manifesto pela Democratização da USP

por Jorge Luiz Souto Maior

No começo deste ano eu estava em Liverpool à procura de um sonho perdido, os Beatles, e me deparei, talvez não por acaso, pois o destino tem razões que a própria razão desconhece, com a dura realidade tratada no Museu Internacional da Escravidão, inaugurado em 2007.

Várias coisas me impressionaram naquele local, sobretudo a menção honrosa feita ao Brasil, como tendo sido o último país das Américas a eliminar a escravidão, embora, até hoje, como bem sabemos, não tenha eliminado o trabalho escravo. Além disso, impressionei-me com um poema refletido no chão, atribuído a um pastor, de nome Martin Niemöller, que foi escrito na Alemanha nos tempos do nazismo, com o seguinte teor:

Quando os nazistas levaram os comunistas,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era sindicalista.
Quando levaram os judeus,
eu não protestei,
porque, afinal,
eu não era judeu.
quando eles me levaram,
não havia mais quem protestasse

Quando retornei ao Brasil, estudando um pouco mais o contexto daquele poema, deparei-me com outro, de Bertold Brecht:

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo

As pesquisas me conduziram a mais um poema, este produzido no Brasil, de autoria de Eduardo Alves da Costa, que foi elaborado na época da ditadura militar e de onde se extrai a passagem que se tornou célebre na luta democrática instaurada na época do golpe de 64:

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

O que essas manifestações têm em comum? Elas se identificam pela poética demonstração de que as supressões da liberdade se “desenvolvem” progressivamente na medida em que encontram espaços para tanto, sendo que estes espaços são criados pela tática do medo.

Tendo por base esse aprendizado histórico, fácil compreender que assistimos na USP, presentemente, uma escalada anti-democrática repressora da liberdade, que avança a partir da estratégia do medo e da desinformação.

Mesmo sem nenhuma pretensão poética, é possível dizer:

Primeiro levaram um sindicalista
E não dissemos nada, pois não somos sindicalizados
Depois levaram, na calada da noite, os aposentados
Não nos importamos, afinal, estamos na ativa
Aí, oficializaram a política da repressão militarizada
E levaram estudantes
Sem entender bem o se passava, não protestamos
Na seqüência, já com armas em punho, levaram mais estudantes
Não reagimos porque não somos mais jovens sonhadores
Então, se conferiram o poder de chamar o golpe de 64 de
Revolução!

Após isso, se sentiram à vontade para assumirem, abertamente, o projeto de privatização do ensino, ameaçando fechar cursos que não se integram às exigências do mercado.

Adotaram, de modo cada vez mais explícito e abrangente, a terceirização, que, como bem sabem, precariza o trabalho e dificulta as resistências por parte dos trabalhadores.

Não se importaram com as reincidentes agressões desferidas por Policiais contra estudantes no seio da Universidade e assumiram postura de que não lhes diz respeito o atentado contra a sede do sindicato dos servidores – o Sintusp (a que ponto chegamos?)

Passaram a levar a ferro e fogo a intolerância contra os contestadores. Fiscalizam, invadem a privacidade, institucionalizam a espionagem.

Instauraram processos administrativos contra os demais diretores do sindicato.

Têm tratado os conflitos, frutos das revoltas de estudantes e servidores contra esse estado de coisas, como meros casos de polícia, pois não se vêem, minimante, constrangidos ao diálogo.

E, claro, não podia faltar, buscaram utilizar os meios de comunicação em massa para destruir moralmente todos que, não podendo ser presos ou descartados, ousam a se posicionar, abertamente, contra a situação posta.

Como se vê, é preciso, urgentemente, revelar que está em curso na Universidade de São Paulo um procedimento típico de regimes ditatoriais, que, inclusive busca justificativas para seus atos na lei, que é vista apenas parcialmente, sem se atentar para o contexto geral do ordenamento jurídico, o qual, vale lembrar, está construído, exatamente, de modo a evitar que em nome da lei se obstruam as liberdades individuais e a eficácia dos direitos sociais, tratados, ambos, na Constituição Federal, como direitos fundamentais.

É necessário ter a exata compreensão do que representa a racionalidade jurídica, fixada na Constituição, posta a partir dos postulados dos Direitos Humanos, integrados ao contexto do pacto de solidariedade, com a exata dimensão de sua representação histórica para o futuro da humanidade, pois sem essa base teórica bastante consolidada e sem as práticas que decorram de sua defesa, corre-se o risco do argumento da legalidade ser retoricamente utilizado a ponto de justificar todo o tipo de barbaridade praticada contra a condição humana, como, aliás, já se verificou em nosso país.

Urge recordar: (Clique aqui)

(…) O Ato Institucional n. 05 foi assinado por várias pessoas, dentre elas, Luís Antônio da Gama e Silva, um dos mentores do texto do Ato, o qual antes de ser nomeado Ministro da Justiça, em 1967, ocupava o cargo de Reitor da Universidade de São Paulo, advindo da Faculdade de Direito, onde atuava como Professor Catedrático de Direito Internacional Privado, em vaga hoje pertencente ao Sr. João Grandino Rodas.

Por ocasião do afastamento temporário de Gama e Silva, a Reitoria, depois de curto tempo nas mãos de Mário Guimarães Ferri, afastado por questões médicas, acabou sendo assumida pelo professor Hélio Lourenço de Oliveira, o qual, por não apoiar o regime militar, foi aposentado compulsoriamente. O Reitor nomeado, em sua substituição, foi o professor da Faculdade de Direito, Alfredo Buzaid, que, posteriormente, por nomeação de General Emílio Garrastazu Médici, galgou o posto de Ministro da Justiça, tendo sido nomeado, para Reitor, o professor Miguel Reale, também oriundo da Faculdade de Direito.

Não se pode conceber como mero descuido, portanto, ter a atual Direção da USP nominado de “Revolução” o golpe de 64, ainda mais se considerarmos que o Reitor, em sua atuação na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, de 1995 a 2002, acompanhado de outros dois membros, dentre eles o General Oswaldo Pereira Gomes, “votou contra a culpabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de vários presos políticos”, sendo que a declaração de culpa nestes casos (onze, no total) foi adotada pela maioria dos demais integrantes da Comissão (quatro), conforme denúncia feita por Carlos Lungarzo, membro da Anistia Internacional.

Concretamente, sem uma reação consciente e esclarecida ao que se apresenta na atualidade da Universidade de São Paulo, exigindo-se a reversão do quadro, com a imediata retirada dos processos administrativos contra servidores e alunos, a readmissão do sindicalista Brandão, o cancelamento do convênio feito entre a Administração da Universidade e a Polícia Militar (que instaurou a lógica da repressão militarizada no Campus), a realocação imediata dos desalojados do CRUSP e a convocação de uma estatuinte para a institucionalização de procedimentos verdadeiramente democráticos na Universidade, iniciando-se pela eleição democrática para Reitor e atingindo a construção de um projeto de uma Universidade verdadeiramente pública, com o fim do Vestibular, a eliminação das Fundações de direito privado e demais cursos pagos, o fim da segregação entre servidores e professores, a derrubada de todos os muros que separam a Universidade da sociedade etc., corre-se o risco de ao acordamos pela manhã nos depararmos com um novo Ato Institucional publicado no Diário Oficial.

Importante ressaltar que muitos dos processos administrativos instaurados contra servidores e alunos têm por base um Decreto de 1972, que prevê, dentre outros atos puníveis, a prática de atitudes que atentem contra a moral.

É por isso, ademais, que a intolerância verificada presentemente na USP a todos diz respeito. Não cabe o argumento de que não se tem nada com isso, por que, afinal, não se está a ela integrado, pois, como traduzem os poemas supra, primeiro fazem aqui, depois, por aí. O caso do Pinheirinho, no qual se utilizou a mesma logística para a retirada dos estudantes que no final do ano passado ocupavam o prédio da Reitoria, reflete exatamente isso, sendo oportuno destacar que se avizinha situação semelhante na comunidade San Remo, situada ao lado da própria Universidade de São Paulo. Aliás, recentemente foi aprovada no Conselho Universitário uma leva de contratação de professores temporários, deixando-se clara a política de diminuição do poder da classe dos professores que vem por aí.

É por tudo isso que a presente reação, com o lançamento do Manifesto pela Democratização da USP, que tem o propósito de impedir que uma tal realidade, cujo processo já se iniciou no seio da Universidade, não volte a atingir a toda a sociedade, representa a mais singela homenagem que se pode prestar aos parentes e amigos dos cidadãos brasileiros que sofreram danos irreparáveis por todos aqueles (e não, genérica e impessoalmente, regime ditatorial) que legitimaram a ditadura e com ela pactuaram, além de constituir a fórmula mínima de respeito à luta que esses cidadãos implementaram por todos nós.

É certo que muitas pessoas não querem perceber a gravidade do momento, seja por se beneficiarem dele, seja por puro comodismo. A questão é: até quando poderão se calar? E mais ainda: se já não será tarde demais quando quiserem se manifestar?

Para esses últimos, que precisam sair do mundo dos sonhos, vale, ainda, o recado há muito deixado por Rosa Luxemburgo:

“Quem não se move não sente as correntes que o prende.”

(Transcrevi trechos)